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terça-feira, 10 de agosto de 2010

[V>Teatro] Prévia - Hair


Charles Möeller está refeito.
Após dormir das 3h às 7h da manhã por duas semanas seguidas, os olhos por debaixo dos óculos não deixam revelar olheiras nem marcas do choro que lhe roubou o sono da noite anterior.
Ele acabara de deixar o teatro Teresa Rachel, pisava a calçada em frente de casa, conferia o ponteiro indicando meia-noite e girava a chave na fechadura do portão quando um grito o paralisou: “Charles!” Ao se virar, viu o desespero no rosto de um garoto, que abanava uma folha de papel e implorava atenção: — É a terceira vez que entrego currículo e não sou chamado. Trabalhar com você é o meu sonho! — dizia o menino.
Assustado, Möeller não sabia o que fazer com o garoto que acabara de chegar de Manaus, descobrira seu endereço e aguardava havia sete horas para entregar o papel. Desde que, há mais de 20 anos, Charles Möeller e Claudio Botelho iniciaram o primeiro trabalho em conjunto, escolha de elenco ganhou nome de audição (mal traduzido do inglês “audition”), e a tal audição se transformou num dos mais intensos e delicados momentos na vida de ambos.
Assim como eles, a produtora de elenco Marcela Altberg também teve o sono devorado pela leitura dos 5 mil currículos que precisou analisar. A causa das noites em claro, do ato desesperado do menino e do arrancar de cabelos de todos é uma só: “Hair”, o musical que aterrissa em outubro no Teatro Casa Grande.
— Entrei numa crise de choro ontem à noite — conta Möeller. — Os dias passam, e eu fico mais desesperado. Não sei o que fazer com tanta gente. Não pela quantidade, mas pela qualidade. Queria poder fazer um espetáculo com 150 atores, mas só tenho 30 vagas.
A última frase é repetida momentos depois aos candidatos que sonham participar da versão brasileira do musical da Broadway. Rodeado por dez pessoas, três laptops e muitos papéis sobre uma grande mesa em frente ao palco, Möeller é um misto de concentração e ansiedade. Na semana passada, ele teve de analisar o desempenho vocal de mais de 600 candidatos. Hoje, finaliza a segunda fase do processo, que inclui avaliação de canto e de uma coreografia ensinada aos candidatos minutos antes de se apresentarem à banca.
Nos bastidores, o clima é de tensão e euforia. Cada um carrega no peito uma plaqueta com um número, e o clima de “American idol” só se desmancha com o retorno que a equipe dá em troca: — Detesto o poder do diretor. Acho cafona uma banca autoritária. Fui ator e muito maltratado — conta Möeller. — Tem gente que se torna diretor e usa isso para se vingar. Esquecem da vulnerabilidade de quem está no palco. É um processo cansativo, delicado, e tenho que estar aberto para captar as sutilezas. Assim como eles, fico completamente sugado. É muita expectativa em cima da gente.
O que parece exagero, no caso de um diretor que há duas décadas coleciona sucessos, ganha confirmação nos dados. Se para “Gipsy” Möeller e Botelho tiveram de lidar com a expectativa de 3 mil jovens atores, dançarinos e cantores, “Hair” infla o quadro em 2 mil concorrentes.
Críticas favoráveis e boas bilheterias têm gerado não só prêmios na estante e temporadas prorrogadas. Mas, sim, uma nova geração de fãs. E, assim, a cobiça por uma vaga no palco ou na plateia ganha força nos corredores virtuais. Via Twitter, Facebook e YouTube, vídeos, opiniões, cobranças e expectativas são espalhadas a cada nova audição aberta.
— São jovens aficionados por musicais, fazem lobby, pressionam… Antes eu dava muita atenção, mas hoje mantenho cuidado. Não estou acostumado com isso. É coisa de rock star — diz Möeller.
Acostumada a trabalhar com cinema e publicidade, a preparadora de elenco Marcela Altberg descobriu um novo universo desde que, há quatro anos, passou a trabalhar com a dupla Möeller & Botelho. Intrigada com a evolução dos musicais na cidade, ela desenvolveu um método capaz de atender às especificidades das produções. E, assim como Möeller e Botelho, se surpreende com a quantidade cada vez maior de candidatos capacitados.
— É uma mudança cultural. Há pouco tempo não existia preparador de elenco para musicais — conta Marcela. — No meu primeiro trabalho, trouxe uma cantora linda, carismática. Achei que ia arrasar. Mas vi que não basta ter voz. Fazer um musical requer estudo e formação. Não basta saber dançar, cantar ou atuar, e nem saber fazer os três muito bem. Tem que saber fazer os três muito bem e juntos. Cantar dançando e interpretando. Em “Hair” isso é fundamental. As músicas são difíceis, e a montagem não para.
Definida pelos diretores como “lisérgica, caleidoscópica e frenética”, a versão 2010 de “Hair” no Rio começa a tomar forma no fim do mês, com o início dos ensaios. Até lá, os dois se deram a missão de eleger um elenco que possa conjugar características únicas.
— A peça se passa em 1967, então preciso de um elenco jovem, que tenha aquela sexualidade, liberdade física e força de ir para as ruas — diz Möeller.
Ciente do desafio, o cantor Márvio dos Anjos passou por um treinamento especial para se candidatar a uma das disputadas vagas.
— Perdi 12 quilos e fiz aulas de canto específicas para musicais — conta Márvio. — “Hair” é, além do sonho hippie, uma peça que encarna o espírito de uma das épocas mais interessantes do rock.
A concorrência em torno da nova produção se explica, entre outros fatores, pela mística da Era de Aquarius e de todo o histórico que envolve “Hair”. Escrito em 1967 por James Rado e Gerome Ragni, com música de Galt MacDermont, “Hair” é o clássico musical roqueiro, um fenômeno que se sustenta na Broadway e em outras partes do mundo sem perder o viço.
Na história, os jovens Claude, Berger e Sheila lideram um grupo de amigos que se lança como uma tribo pelas ruas de Nova York, espalhando a paz e o amor da cultura hippie e o comportamento libertário que inclui a revolução sexual e a experimentação de drogas, além do engajamento contra a Guerra do Vietnã, a destruição do meio ambiente e o preconceito que segrega raças, classes e sexos.
No palco, as ideias ganham força com canções como as clássicas “Aquarius” e “Let the sunshine in”. “Hair” também fez sucesso no cinema, em 1979, dirigido por Milos Forman, com Treat Williams e Beverly D’Angelo no elenco, além de ter tido uma célebre versão teatral brasileira, com Sônia Braga e Armando Bogus, em 1969.
— Os hippies são os responsáveis por conquistas que vivemos hoje em dia. Mas ainda acho fundamental falarmos sobre liberdade. Ideias e direitos simples que esquecemos de usufruir — explica Möeller. — Apesar das mudanças, vivemos um período careta. Fui processado por ter um seio de uma menina à mostra em “O despertar da primavera…”. E as pessoas ainda se chocam quando falo que faremos cena de nudez (a mais simbólica da peça). É claro que terá. “Hair” é um manifesto, algo que transcendeu a história da Broadway.

Fonte: O Globo – 07/08/10

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