A temporada de teatro da Broadway está se aproximando do final, mas um espetáculo pequeno e esplêndido chegou para nos lembrar dos motivos pelos quais muitos de nós continuamos retornando à Broadway apesar das inúmeras decepções que ela tenha nos causado.
Everyday Rapture, que estreou no American Airlines Theater, não é de forma alguma um musical convencional da Broadway. Mas não consigo pensar em outra produção que explique de maneira tão afetuosa a essência e o atrativo dos musicais, e os motivos para que continuem a ser parte indispensável do panorama de Nova York.
Primeiro visto em montagem off Broadway pelo Second Stage Theater, Everyday Rapture ostensivamente conta a conhecida história de uma jovem do interior dos Estados Unidos que se apaixona pelo mundo do teatro -e sua capital, Manhattan- de longe, rompe com os limites de sua cidade natal que jamais a compreendeu e se torna uma grande estrela em grandes musicais de sucesso em Nova York. Bem, melhor fazer logo as ressalvas necessárias. Ela na verdade, em suas próprias palavras, se torna uma "quase quase quase estrela" em espetáculos de quase sucesso. E são todos esses "quases" que a tornam tão excelente companhia emEveryday Rapture.
A jovem se chama Sherie Rene Scott e é interpretada por Sherie Rene Scott, e seria praticamente seguro dizer que esse é o papel de sua vida. É claro que existe uma sobreposição significativa entre o personagem e a atriz, que de fato criou papéis de destaque na Broadway em duas das extravagantes produções Disney (Aida e A Pequena Sereia), bem como em Dirty Rotten Scoundrels. Mas ao contar a história de Sherie, Scott enfeita, exagera, modera, distorce e modula as complexidades e inconsistência de uma vida pessoal de forma a enquadrá-las às harmonias reparadoras de uma fábula musical. E ao fazê-lo ela cria uma ficção bela e divertida que a um só tempo se distancia e se apega à vida real. O que é exatamente aquilo que um musical deveria fazer, pelo menos de acordo com as minhas expectativas.
Com libreto de Dick Scanlan e Scott e direção virtuosa, bem humorada e eficiente de Michael Mayer, Everyday Rapture poderia facilmente ter sido montado com um título extraído de uma das canções do musical Chorus Line, que Scott certamente deve ter ouvido quando menina -What I Did for Love o que eu fiz por amor; Mas isso provavelmente seria sentimental demais. Scott consegue ser emotiva e sardônica na mesma fala.
Seus modos exagerados, combinando sex appeal e sinceridade em igual medida, poderiam ser classificados como ingenuidade fingida. Mas é bom levar em conta que a parte do fingimento não tem nada de cínica: é uma escolha estilística que permite que Scott trabalhe com a sofisticação que uma audiência de Nova York, ou uma audiência de nova-iorquinos, exige. E não se pode negar que, quando ela canta, com um repertório imensamente diversificado, ela parece tão segura e inventiva quanto os mais experientes artistas de cabaré. Depois de dedicar tantas noites aos espetáculos da Broadway, ela não enfrenta dificuldades para exibir a intimidade de uma apresentação de cabaré em uma casa grande como o American Airlines Theater. Scott consegue traduzir naturalmente um retrato realista de maneira a exibi-lo em versão ampliada.
Ao criar seu personagem, Sherie escolheu como modelo uma estrela e tanto: Judy Garland, cuja música lhe foi apresentada por seu primo Jerome, que costumava dublar escondido as canções da estrela e é uma alma-gêmea. Amar Judy não era tarefa fácil em meio à comunidade de religião menonita em que Sherie cresceu, no Kansas. Ela não demorou muito a perceber uma divisão clara em seu caráter. Ela vivia, como diz, "dividida entre dois amores: Judy e Jesus".
Essa divisão é exposta de maneira deliciosa quando Sherie canta You Made Me Love You, diante de uma montagem de imagens de Jesus. Scott consegue imitar Judy ("não importa o que Deus tenha a dizer, com certeza vou modular o tom"), mas quando o faz ela não parece uma simples cópia. Sherie fala do êxtase de viver sua vida "dentro de uma canção", e isso significa dar à canção a forma da artista que a interpreta.
Assim, quando Sherie imita Garland na verdade o que ela faz é mostrar a maneira pela qual ouvia e a reagia a Garland, ao imitar sua voz. E ninguém deveria perder a interpretação reveladora de Sherie para as canções de Rogers, o apresentador de programas infantis cujas homenagens ternas ao que cada pessoa tem de especial ajudaram Sherie a navegar entre os escolhos da adolescência. A escolha das canções e sua apresentação, de forma a incorporar momentos cruciais da vida de Sherie, jamais cede à obviedade. Mas elas provam ser veículos perfeitos para viver uma autobiografia em forma de canção.
Os capítulos dessa história incluem a inevitável primeira visita à metrópole (que leva a uma interpretação gentil e admirada de I Guess the Lord Must Be in New York City, de Harry Nilsson), o primeiro amante (descrito de maneiras que permitem a Scott fazer uso brincalhão de alguns truques clássicos de prestidigitação) e uma tarde de introspecção cósmica inspirada pelo dia em que seu filho de três anos de idade encontrou um trevo de quatro folhas (o que conduz a uma versão meditativa de Why, de David Byrne).
Não acontece nenhuma das cenas esperadas sobre os bastidores da Broadway, ou sobre cerimônias de premiação. Isso seria fácil demais para um espetáculo que insiste em fazer música de seu próprio tipo. Em lugar disso, há um segmento divertidíssimo, e um tanto doloroso, sobre o relacionamento online entre Sherie e um fã de 15 anos (interpretado pelo maravilhoso Eamon Foley) que revela megabytes de verdades sobre o estrelato e seus insatisfeitos na era da Internet. Sherie sai abalada de seu encontro com Broadwayislove09@earthlink.net (o personagem de Foley) e emerge da experiência com o ego reduzido a um grão de poeira.
Essa imagem de um grão de poeira tem papel proeminente em Everyday Rapture. É o avesso da crença de que o mundo foi criado especialmente para você. Duvido que qualquer artista ¿ou melhor, que qualquer pessoa- não tenha sentido a gangorra dessa dicotomia. E parece apropriado que Everyday Rapture tenha cenários (de Christine Jones) e figurinos (de Kevin Adams) que evoquem tanto o brilho dos teatros e casas noturnas quanto a infinita escuridão do cosmos. Até mesmo a coreografia de Michele Lynch tem algo de dúplice, misturando os movimentos clássicos do mundo do espetáculo a demonstrações de desajeito reservadas às pessoas terminalmente introspectivas.
Ao escavar para pesquisar seu ego, Sherie recebe apoio de primeira categoria de todo o elenco. Como vocalistas de apoio, as Mennonettes (Lindsay Mendez e Betsy Wolfe) parecem ter emanado diretamente das fantasias de Scott. (Você não tem uma fantasia sobre quem faria seus vocais de apoio?) A orquestração e os arranjos para a banda de palco, uma unidade de primeira linha, são obra de Tom Kitt (o compositor de Next to Normal). E o diretor que ela escolheu, lembrem-se, é Mayer, o homem que encenou Spring Awakening eAmerican Idiot, nesta temporada.
Everyday Rapture é em si um grão de poeira, se o comparamos aos grandes espetáculos da Broadway em termos de tamanho. Mas o que Scott e seu pessoal conseguem aqui é uma estranha alquimia de ego, anseio, desespero e misticismo, aquela que infunde todo grande espetáculo da Broadway. É isso faz dos grãos humanos de poeira estrelas no firmamento. Ao expor a química dessa transformação, Scott jamais brilhou com mais intensidade ou iluminou mais.
Fonte:
, Tradução de Paulo Migliacci, disponível em: terra.com.

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